22h01

marielle e lula

No Brasil da “democracia da meia bota”

por Ângela Carrato*, especial para o Viomundo

O Papa Francisco teve e continua tendo muita dificuldade com a Igreja Católica no Brasil.

Ao contrário de suas determinações e das próprias lições de Jesus Cristo, parcela significativa dos seus integrantes têm preferido a tranquilidade das sacristias a colocar em prática os evangelhos.

Foi o que aconteceu neste 21 de abril, em Ouro Preto (MG), quando foram comemoradas duas datas fundamentais, uma para os católicos e a outra para toda a população: a ressurreição de Cristo e a morte do patrono cívico do Brasil, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.

O ápice da celebração da Semana Santa sempre acontece no domingo de Páscoa, quando os católicos comemoram a subida aos céus de Cristo, após morrer injustamente na cruz, vítima do ódio dos poderosos de sua época.

Para tanto, é tradição nas cidades históricas a feitura em suas ruas de coloridos tapetes de serragem invocando cenas religiosas e também questões que remetem aos ensinamentos de Cristo para os dias atuais.

Em Ouro Preto, a elaboração dos tapetes começa por volta das 21 horas do sábado e atravessa a madrugada, envolvendo população e visitantes.

Trata-se de uma atividade que, mesmo tendo a Igreja Católica como sua principal motivadora, está longe de ser exclusividade dela. Até porque envolve trabalho voluntário e vias públicas, numa extensão de mais de 2 km.

Dentre os vários tapetes que estavam sendo feitos no último domingo, encontrava-se um que tinha como tema a morte e a opressão.

Para ilustrar, foi escrito “Marielle Vive” e “Lula Livre”.

Como se sabe, a vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, foi assassinada há mais de um ano e até agora não se conhece efetivamente quem a matou e quem mandou matá-la.

Já em relação ao ex-presidente Lula, ele foi condenado, sem provas, num julgamento marcado por tantos arbítrios que em qualquer país efetivamente democrático, já teria sido anulado.

Se não fosse a truculência da Guarda Municipal de Outro Preto e a visão tacanha de setores da Igreja Católica na cidade, esse tapete teria passado quase despercebido, pois sua mensagem em nada diferenciava de outras que clamavam por “justiça”, “harmonia”, “tolerância”, “paz entre os homens” e “respeito aos ensinamentos de Cristo”.

Mas não foi isso o que aconteceu. Por volta de uma hora da madrugada, em frente ao cine Vila Rica, uma dezena de moradores e alguns turistas estavam quase concluindo o tapete com as inscrições “Marielle Vive” e “Lula Livre” quando foram surpreendidos por um grupo de sete integrantes da Guarda Municipal. Eles vinham com a determinação para que apagassem as inscrições.

Imediatamente lhes foi solicitado o documento legal contendo a determinação, uma vez que os presentes consideraram a ordem uma nítida ilegalidade e afronta à da liberdade de expressão.

Os guardas alegaram que não possuíam nenhum documento nesse sentido, por se tratar de “um pedido da Igreja Católica”.

Como no Brasil o Estado é laico, um pedido da Igreja Católica não se torna, por si só, ordem, argumentaram os presentes. Para isso é que existe a Justiça, lhes foi dito em seguida.

Três guardas deixaram o local, enquanto os quatro que lá permaneceram passaram a acompanhar a conclusão dos trabalhos do tapete. Alguns minutos depois, os guardas que tinham deixado o local retornam com reforços e sem qualquer documento legal que os respaldasse, dois deles passaram a pisotear o tapete com suas botas e coturnos.

Diante da indignação dos presentes, um deles exclamou: “não sei por que vocês defendem tanto essa Marielle! É só mais uma mulher negra que morreu”.

Essas palavras indignaram de tal forma os presentes, que vídeos que circulam nas redes sociais captam o momento exato em que a Guarda Municipal começa a pisotear o tapete e explode um coro improvisado protestando aos gritos de “Marielle vive” e “ei, Bolsonaro, vai tomar no c*”.

Após destruírem o tapete, os integrantes da Guarda Municipal se afastaram e ficaram observando de longe o local. De longe também integrantes da Polícia Militar de Minas Gerais acompanharam tudo.

A decisão dos presentes foi no sentido de refazer o tapete, deixando claro que aquela ação era ilegal, uma afronta aos ensinamentos de Cristo e à própria democracia.

Quando, mais de uma hora depois, o tapete estava quase refeito, os Guardas Municipais com suas botas e coturnos destruíram tudo pela segunda vez.

Muitos dos presentes registraram o fato e o divulgaram em suas redes sociais e perfis. Rapidamente o fato deu o volta ao mundo.

Em Roma, o Papa Francisco, na contramão do obscurantismo reinante em Ouro Preto, mais uma vez pedia compreensão e paz entre os homens, mas não de forma abstrata.

O Sumo Pontífice condenava os ataques que deixaram centenas de mortos e feridos no Sri Lanka durante as comemorações da Páscoa. Francisco expressou sua tristeza e falou estar perto “de todas as vítimas de uma violência tão cruel”.

Aliás, Francisco tem estado ao lado de todas as vítimas e combatido sem tréguas as injustiças, convencido que a ressurreição é a grande resposta para as injustiças. E uma das formas possíveis de ressurreição, para católicos e não católicos, é manter viva a memória sobre a verdade.

Algumas horas depois, no Centro de Artes e Convenções da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), o governador de Minas, Romeu Zema, entregava as Medalhas da Inconfidência de 2019 a algumas dezenas de pessoas.

A medalha, criada em 1952, pelo então governador Juscelino Kubitschek, é uma forma de homenagear “o mérito cívico do cidadão que, em Minas, se distinga pela notoriedade de seu saber, cultura e relevantes serviços à coletividade”.

Há muito a Medalha da Inconfidência não se limita a condecorar mineiros. Tornou-se praxe atribuí-la a todos os poderosos de plantão.

Esse ano, entre os agraciados estavam o presidente Jair Bolsonaro e o governador do Rio de Janeiro, José Witzel. Nenhum dos dois compareceu, quebrando uma tradição de décadas.

Em vídeo publicado nas redes sociais do deputado estadual Bruno Engler (PSL-MG), Jair Bolsonaro aparece se desculpando por não comparecer à cerimônia, onde receberia o Grande Colar, honra máxima da solenidade. “Tenho compromissos familiares assumidos”, disse o presidente.

Durante a solenidade também não houve qualquer referência à truculência levada a cabo, horas antes, pela Guarda Municipal de Ouro Preto. Até porque Tiradentes, o patrono maior da solenidade, certamente teria ficado envergonhado, logo ele que lutou e morreu pela liberdade dos brasileiros. Luta imortalizada na legenda “libertas quae sera tamem”, que figura na bandeira de Minas Gerais.

Até o momento, a Arquidiocese de Mariana que compreende 132 paróquias, entre elas a de Ouro Preto, não se manifestou. Seu titular é Antônio José dos Santos, um religioso de 62 anos, com doutorado em Direito Canônico em Roma. Ele assumiu em 25 de abril do ano passado e não há como responsabilizá-lo pela repressão que aconteceu no ano passado durante a mesma solenidade da Semana Santa.

Já a Prefeitura de Ouro Preto informou que a ação seguiu as orientações do Santuário de Nossa Senhora da Conceição. De acordo com a Prefeitura, a Igreja teria solicitado que apenas “tapetes devocionais” fossem confeccionados.

A Guarda Civil Municipal, diante da repercussão, também através de nota, subiu o tom, chegando a afirmar que a “liberdade de expressão não é absoluta”.

Segundo o comunicado, “o recado já foi dado em 2018, em 2019 não foi diferente. Respeitem Ouro Preto, nossas tradições”.

A nota afirma que “quanto ao episódio onde os agentes municipais desmancham desenhos de cunho político entre outros que nenhuma relação possui com os ‘tapetes devocionais’, informamos que a liberdade de expressão não é absoluta ainda mais quando outros direitos estão sendo afetados”.

A nota da corporação complica mais ainda uma situação já delicada. Não cabe à Igreja determinar a ação da Guarda Municipal e menos ainda cabe à Guarda Municipal definir o que são “tapetes confessionais” e quais os limites da liberdade de expressão.

Como lembra o poeta, tradutor e ensaísta paulista Augusto de Campos, de 88 anos, um dos criadores do movimento Concretista, a situação brasileira, resultante das últimas eleições e do próprio golpe sofrido pela legítima presidente Dilma Rousseff, é “retrógrada e catastrófica”, a ponto dele referir-se ao Brasil atual como sendo uma “democracia de meia bota”.

Campos lembra que a condenação do presidente Lula “não foi embasada em provas suficientes e convincentes, o que só por si já demandaria a sua anulação”.

Todo esse processo revela “uma situação de excepcionalidade que fere fundo a democracia e a justiça em nosso país”.

Ainda segundo Campos, “há artistas que são indiferentes ao ambiente social em que vivem. Não é o meu caso”.

Indo além, em recente entrevista ao portal Tutaméia, ele explica que “entre nós a história virou paródia da paródia. Voltaram os militares e um estado carola, conservador, punitivo e empresarial. Boi, bíblia e bala, como já se estigmatizou. E num país que tem mais filósofos que a Grécia e menos filosofia que a do Conselheiro Acácio, ninguém sabe onde se vai parar…”

Em outras palavras, Augusto de Campos expressou a mesma preocupação de Pedro Aleixo, vice-presidente da República que, diante da doença e morte do general Costa e Silva, foi impedido de assumir o governo.

Nos idos de 1968, Aleixo deixou claro que tão ou mais temível que os generais era o guardinha da esquina, que passava a executar a lei a seu bel prazer.

O ano agora é o de 2019, mas nunca estivemos tão perto de 1968.

Fonte: https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/angela-carrato-tiradentes-teria-ficado-envergonhado-com-a-truculencia-que-destruiu-duas-vezes-o-tapete-com-marielle-vive-e-lula-livre.html